O dia amanhecera radiante, Ana não conseguia ficar mais tempo na cama apesar de só ter dormido 5 horas. A vida estava à sua espera lá fora e não havia tempo a perder. Não aguentava conter a excitação que sentia sempre que pensava na noite que a esperava. O telefonema na noite anterior acalentara-lhe as esperanças de que tudo iria ficar bem melhor. Aquela voz fazia-lhe bem, aquecia o seu coração e devolvia-lhe a calma que perdera há uns anos a trás.
Paciência.
Não importa o que perdera, mas sim o que podia construir agora, nada mais interessava. Naquele dia iria matar as saudades que sentia da pessoa que amava e desabafar as tristezas que acumulara. A sexta feira anterior tinha sido devastadora em todos os sentidos que se podiam apontar com um dedo. Ainda tentara estar com a pessoa de quem gostava para poder desafogar as suas dores, mas infelizmente João não pudera estar com ela. Tinha trabalho para fazer, e ao que parece trabalho é uma coisa muito importante. Ana marcava o telefone com a inscrição de João, mas a voz que Ana gostava de ouvir não surgia do lado de lá, escutava apenas o piii que a irritava ainda mais.
Ana nunca foi muito boa a controlar as suas ansiedades e inseguranças, mas o que podia fazer se tinha tantas saudades e vontade de estar com ele, mas sobretudo de poder estar com ele para poder falar um pouco sobre o que lhe acontecera, não queria estar com mais ninguém nem falar com outrem.
Levantou-se naquela manha antes que o despertador, marcado para berrar às 6:30, tocasse. Começou um ritual de embelezamento para que nada falhasse na noite que se adivinhava: tomou banho com direito a esfoliação de pele, depilou-se muito bem depilada, colocou cremes vários no corpo e cara, vestiu o seu body de rendinha azul que curiosamente fora o eleito na primeira noite que passara com João, escolheu uma roupa suficientemente bonita e suficientemente sóbria, e talvez tenha feito mais qualquer coisa que agora já não é assim tão importante referir. Queria estar bonita para ele, queria que ele a fizesse sentir bonita já que ela não se achava bonita há muito tempo. Nem bonita, nem inteligente, nem coisa alguma.
Saiu de casa cheia de vontade de ser feliz e mudar a má sorte.
Ficou chateada quando se apercebeu que se esquecera da tablete de chocolate em casa, aquela que queria dar a João. Este tivera um dia anterior muito pouco risonho, para não dizer muito mau. Ana queria que ele ficasse bem e achou que dar-lhe um mimo seria uma boa forma de lhe dizer sem palavras, mas sim com chocolate, «estou aqui para o que precisares, sempre». Infelizmente o chocolate ficara em casa, portanto teria de comprar um novamente.
Paciência.
Arranjaria uma outra forma de dizer a ele o quanto o admirava e lhe queria bem. Arranjaria uma outra forma de o fazer feliz.
Ana sabia que João estava aborrecido com ela, mas já lhe tinha pedido desculpas e reconhecido que às vezes fazia coisas parvas, mas esperava que ele compreendesse que nem sempre é fácil fazer tudo bem à primeira, precisava de tempo para aprender. Ana precisava que João tivesse paciência com ela.
Paciência.
As horas no trabalho não passavam. Que aborrecimento era estar ali quando queria estar noutro sitio bem melhor. Estar aninhada nele, adormecer enquanto ele a abraçava e o frio desaparecia. Sairia um pouco mais cedo para ir ter com ele o mais depressa possível.
Saiu e conduziu o mais depressa que conseguia até ele.
Retocou o batom vermelho antes de colocar um pé fora do carro e quando colocou um pé do lado de fora sentiu o arrepio. Mas podia ser só insegurança, teria de ter paciência.
Paciência.
Ele já estava bem ali. Bem perto. Fumava o seu cigarro a aproximava-se a passos tranquilos. Ana começava a não sentir tranquilidade alguma mas apagou o mau agoiro da sua mente quando viu João. Ele fazia-a sorrir e ter esperança. Encaminhou-a para uma varanda de um sétimo andar daqueles sétimos andares que se confundem com um décimo ou vigésimo. A conversa entre os dois acontecia. Ana tinha vontade de se aproximar dele e beijá-lo, mas sabia que ele não o permitiria. Ele tinha uma série de regras que não se podiam quebrar, limites precisos que Ana tentava respeitar embora na opinião dela tais limitações já estavam há muito quebradas. Por ela as limitações não existiam, porque ela não limitava aquilo que sentia e já lhe tinha explicado. Ana já tinha confessado tudo o que sentia e que não sentia, Ana confiara em João sem qualquer hesitação, e é preciso salientar que Ana confia em pouca gente, para não dizer nenhuma.
Apesar de todos os medos que lhe invadiam o peito, Ana confiara e escrevera para ele. Escrevera-lhe poemas e cartas de amor que, por mais pirosas que possam ser cartas e poemas de amor, não deixam de ser de amor, aquele que bate forte no coração de quem se sente e não mente. E amor é o que importa. Ou se gosta ou não se gosta, não existe meio-termo, nem diferentes modos de gostar, apenas diferentes modos de o demonstrar.
Ana falava um pouco a medo quando João a apunhalou bem em cheio no peito:
«Não me quero enrolar mais contigo»
Rasgo que rasga aquilo que estava cosido com muito cuidado. Voltou a descoser de uma só vez. O golpe fora profundo, certeiro, o coração parou e esvaiu-se em sangue. Ana tentava que o pouco sangue que lhe restava chegasse ao cérebro. Porém, «enrolar» era uma grande punhal cravado bem fundo. Ana tinha dormido, falado, amado, confiado, gostado, escrito poemas, feito sexo com João, e mais uma série de coisas e tudo isto com a maior vontade que tinha, mas já pouco importava. O tudo e o nada remetido a um mero «enrolar». João acabara de remeter o amor que Ana sentia para um poço onde a água já secara há muito. Nada para beber. «Não me vou enrolar mais contigo» era a frase que acabara de fazer de Ana o ser insignificante que João achava que Ana era. Ana era um enrolanço para João e apenas isso, como tal, o seu amor não interessava, nem tão pouco o direito a palavras dignas teria.
Ana depois de tal golpe abrupto ainda tentou reagir, erguer-se do chão em que se enterrara, tendo em conta que é difícil sobreviver com um coração que não funciona a tentativa foi árdua. Mas João foi mais rápido na sua vontade de cuspir culpas a Ana, antes que esta pudesse prever acertou-lhe com outro punhal nas costas. Frio. Dor. Sacou de outro e outro foi cravado. Choro. Dor. Ainda um outro. Nada para contar.
Ana foi apunhalada quatro vezes num dia que amanhecera radiante. Esvaiu-se em sangue e juntou mais umas feridas aquelas que já tinha. Chorou compulsivamente e depois limpou as lágrimas com os seus dedos fartos de limpar tantas. Ana conseguiu sobreviver com um coração que viria, mais tarde e aos poucos, a cicatrizar. Um coração que voltou a bombear pouco, pouco de cada vez. A cicatriz ficara para sempre. Ana aprendeu naquele dia que com punhais não se brinca e muito menos com atiradores experientes que os sabem arremessar com eficácia. Ana foi apunhalada e sobriviveu, o resto já não importa.
Paciência.
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